4 de outubro de 2010

O Lorde de Shalott

 I

Sob límpido céu, tranquilo
Um jovem admira o amanhecer
Vê as aves, aprecia o orvalho
Enquanto se deleita em tecer
De puro ouro, belos versos
E assiste a um diverso mundo
Pelos reflexos de seu espelho
Vê as cores, inveja as flores
Da distante ilha de Shalott

Decide o jovem enfim partir
E alcançar as pétalas, perfume
Ouvir a bruma, sentir o vento
E de tudo extrair, tal ourives
Perfeitos e intensos versos
Levanta-se, e canta, e anda
Toca o espelho e seus reflexos
Névoa, vida – ardente vida!
Rumo à tão sonhada Shalott

Em novo mundo, novos ares
Todos veem o peregrino
Sem guia, não entende ele
Os minutos que teimam, ferozes
A bater e moldar versos
Um pequeno relógio, compassivo
Lhe aperta as mãos e o leva
Adiante na alegre jornada
À encantada Shalott

Apresentado a seus pares
Anda o jovem temeroso
Um pálido curinga doente
Um notável mágico sonhador
A lhe ditar cronometrados versos
‘Talvez melhor meu Espelho
E os reflexos turvos da minha,
Da sempre distante Shalott’

No brilho forte do meio-dia
Ao longe cintilou a ilha
Pétalas ao sol, mil cores
O jovem, com seus guias,
Jubilou intrincados versos
De cima a baixo, milhares,
Estilhaços e pequenos cacos
Do espelho já abandonado
Trocado pela esperada Shalott

Pesado, no jardim o peregrino
Sozinho, sem mais guias
Ouviu,  ‘meu Relógio parou!’
Sem lágrimas: mais à frente
Puríssimos, requintados versos!
E pelo caminho, pela relva,
O jovem se proclamou senhor
Honrou os céus, curvou-se à terra
À sua ilha de Shalott!



II

Livre! Em meu Jardim
Agora posso dançar à tempestade
Entre lobos, pássaros e árvores
Posso eu alimentar minha orquídea!

Mas espera! Não a és?
Não tens suas cores, seu perfume
Mas és orquídea! Como podem
Te encantar outros perfumes?

Ah eras perfeita, perfeita!
Cálidos olhos, gélidos dedos...
Minha Cristine, já não és
A máscara que eu uso
Agora eu me farei ouvir!

Ora, é um Jardim!
Há mais e mais flores!
Lá vem uma pequena tulipa
Vê! Feito rosa se veste
Lançando a todos suas raízes!

Vem, me abraça, falsa rosa!
Que tua miséria precisa, por ora,
Da minha paciente companhia
Destila teus problemas, ouvirei.

Mas sabes, minha companhia
Precisa de muito, muito mais
Do que tua fraqueza é capaz
Mais do que tu, sou legítimo Bovary!

Então me abraça, toma meu corpo,
Devora-me feito caça!
Mas suplico, não me toques
Com o sincero olhar do interesse

E quantas mais, ainda mais?
Não foi primeira, nem última
A noite sem resposta
Onde estará o tal reflexo?

E agora essa: uma rosa negra!
Vestes o luto, a noite, o infinito
Mas te prendes a ínfimos dedos
Que mal suportam teu peso!

E então, até um cravo!
Ah, que nem tem perfume...
Basta! Sem mais pétalas,
Pois eu estou meio cansado de flores

Sem liberdade, mas sem companhia
E no centro de doentio Jardim
Para trás, apenas sombra
Estilhaços de um Espelho
Cinzas de um Relógio
Lágrima, sonho, demência,
Sou eu aquele que anda?



III

Ao cair da tarde, vermelha,
Tocou o sol altivas árvores
O vento balançou os lírios
Que admiravam, pasmados,
O nascimento de estranhos versos
Pois do jardim enfim saía,
Mãos vazias, o peregrino
Quase esquecido, partia
De sua amada Shalott

Os céus se abriram, ferozes,
E furiosa tempestade despertou
Como há muito não se via
E há muito esperada
Para sorver audazes versos
Tal colar, um rio se formou
Em volta da ilha florida
E o jovem apanhou seu barco
Partindo, só, de sua Shalott

Para trás olhou, sublime
A tempestade obliterava
Feito fogo todas as cinzas
E cacos, mesmo pétalas
Extirpava tais falsos versos
Às nuvens orou, sem fé
Com o bem-estar da leveza
Uma canção jamais ouvida
Mesmo nas noites de Shalott

Sem caminhos ou horizontes
Apenas a forte correnteza,
A incessante tormenta; em paz
O jovem dormiu, tranquilo
Do vento ouvindo versos
Tombaram árvores,
Perderam-se os lobos,
Fugiram os pássaros.
Em ruínas a lendária Shalott

E no barco navegava
O peregrino adormecido
Pois a noite lenta andava
Enquanto sem sonhos descansava
Alguém farto d’outros versos
Uma trégua, e os céus deixaram
O luar tocar as faces
Silente príncipe, curado
Da hipnose por Shalott

Ao longe, o primeiro raiar
De um amanhecer renovado
Despertou o jovem em seu barco
Saboreou seu renascimento
Em sinceros, profundos versos
E se despediu, saudoso
De sua antiga jornada
Senhor de seu novo mundo
Ele, o Lorde de Shalott



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Escrito no Jardim em 03/10/2010, às 6:00 a.m.

Ouvindo:
The Lady of Shalott - Loreena McKennitt
Misery Loves Company - Emilie Autumn


Imagem: The Lady of Shalott  on boat,
de John William Waterhouse, 1888

Um comentário:

  1. Neto, a metáfora ficou tãão boa!
    No primeiro momento, o sonhador. Louco a alcançar seus sonhos. Buscar o que parecia tão bonito.
    E quando chega encontrar tão distorcidas as imagens que tanto viu e sonhou! Adorei!

    A entrega, o sofrimento, a partida...
    E depois a vida! Lindo!

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