26 de maio de 2010

Distante

          É inegável que estamos fora de casa. As luzes nos incomodam, e é difícil encarar a noite sem pensar em algum olhar estranho que pesa sobre nós como aberrações que somos. Andamos por aí vestindo a ignorância, tateamos tudo que vemos e um sorriso nos brota da face quando alguém acredita na nossa cegueira. E o mundo, por sorte, de certa forma sempre acredita em nós. Mas o que fazer com aqueles poucos – pouquíssimos, aliás, excepcionalmente raros – que param à nossa frente e nos encaram, que enxergam em nossos olhos a certeza, de uma indizível profundidade, de que estas não são as nossas roupas, não é nosso este modo de andar e por Deus! estas palavras não são nossas; o que fazer quando um deles, com os olhos, diz entender, e ainda pior do que tudo, se propõe bom samaritano – o que fazer deles?
          Talvez o melhor seja devolver o olhar, carregado desta vez com outra certeza: estes trajes são temporários, tudo é só por um momento. Não diremos que eles se enganam – eles sabem o que veem –, nem tampouco mostraremos o abismo cujo eco eles acabam de ouvir – seus ouvidos ainda não estão preparados para os gritos que de lá ascendem, e talvez nunca estarão. Diremos, por certo, é certo, é momentâneo, em pouco tempo voltaremos para casa, tomaremos nosso caminho pela noite. É melhor dizer isso. De fato, para eles, é melhor mentir.
          E teremos mesmo de mentir, pois não sabemos mais o caminho, não, e de modo algum ele pode ser ou já foi nosso caminho. Se ao menos nos reconhecêssemos no reflexo na água, se ao menos pudéssemos ver nossos braços limpos... Pois agora, a cada minuto nosso corpo suplica, nossa mente exaspera, e mesmo assim, assim seguimos adiante. Uma pausa, dois minutos, e escrevemos rápido letras tortas. E logo voltamos ao nosso teatro. E enfim chega o momento de poder voltar. E podemos?
          Se ainda na baixa luz de um quarto nós pudermos dormir, já nos esquecemos de que aquele não é nosso lar. E qual seria? As paredes se assomam, os mesmos livros e quadros nos acusam de negligência, e por fim nem aqui estamos sozinhos. E se arriscamos algumas notas, a música se ergue como senhora de nossas mãos, e as castiga com a vara fina da dor. E por fim nem assim estamos livres. E então só nos restam as estrelas.
          É claro que estamos fora de casa. Mas, depois do que somos, nós temos, suportamos, um lar?


Escrito em 25/05/2010, em meio a cinzas.

Imagem: "Natureza morta com espelho", de M. C. Escher
 
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"Ich vermisse jene Freiheit
Die ein Liebender nicht kennt
Doch vermisse ich die Liebe
Die den Lieben empfängt"

"Sinto falta daquela liberdade
Que um amante não conhece
E ainda me falta o amor
Que o amante recebe"

Alles unter Schmerzen, Lacrimosa
(tradução livre)

24 de maio de 2010

A Trovadora



Esta cantora me foi apresentada por uma amiga muito amada, e logo me apaixonei de tal forma que não consegui mais parar de ouvir.
Imagine você de repente transportado para florestas, onde fogueiras ardem, onde velhas histórias são sussurradas pelo carvalho velho... Apenas imagine por um instante, fechando os olhos que no vento existem vozes, velhas vozes que lhe contam lendas sobre donzelas raptadas, cavalheiros mortos em nome de sua honra, sobre magias de amor e ódio, e até mesmo do próprio tempo...
Pense nas suas músicas como um pequeno pedaço de cultura e conhecimento, passado como antigos celtas faziam, através da fala...
Foi tudo que senti ouvindo Cécile Corbel!


Cécile Corbel é uma harpista, compositora, arranjadora e cantora de músicas folclóricas celtas nascida em 1980 na Bretanha, em Finistère, no oeste da Europa.
Na adolescência após aprender violão veio a conhecer a harpa celta.
A jovem cantora bretã fascina por sua personalidade carismática, se tornando um bardo a cantar histórias de um mundo mágico.
Ela também apareceu como a heroína em uma ópera de Alan Simon's intitulado "Anne de Bretagne".
Cécile Corbel também interpreta e co- compôs em japonês a trilha sonora Arrietty's Song do filme Karigurashi no Arriety, produção do estúdio Ghibli, sob direção de Hiromasa Yonebayashi.


Composição do grupo:

Cécile Corbel: harpa e voz
Cyril Maurin : guitarra
Pascal Boucaud : teclados e bateria
JB Mondoloni : bodhran
Eric Zorgniotti : violoncelo

Discografia
2005 - Harpe Celtique & Chants Du Monde
2006 - Songbook vol. 1
2008 - Songbook vol. 2





 





Minha amiga Naty ;)

15 de maio de 2010

Toque Único


A arte sumi ("tinta") foi introduzida no Japão a cerca de 2000 a.C., o sumi-ê (ou, sumie) também é chamado "suiboku-ga", e é a técnica japonesa de tinta monocromática, feita em pinceladas únicas e rápidas. Esta técnica começou na China durante a Dinastia Sung (960-1274), sendo levada até o Japão por monges zen-budistas.
O sumi-ê tem sua origem na caligrafia chinesa, as pinceladas aprendidas na caligrafia são as mesmas utilizadas na pintura.
Uma de suas características é que o toque do pincel no papel deve ser único e espontâneo, sem ter de pensar em algo no momento antes da pintura, estando ligada assim a filosofia e a meditação, pois é preciso estar presente e deixar o braço deslizar sobre o papel, deixando aflorar os sentimentos de seu autor naquele exato instante.
No sumi-ê tradicional usa-se somente a tinta preta, mas isso está longe de tornar qualquer obra simples e sem detalhes. Não existe tempo para reflexão ou pensamento consciente naquilo que se está realizando, não existe a possibilidade de repetição ou correção, um traço é encarado como único, se existir algum erro ele está "morto", e portanto, a obra perdida.
Neste sentido muitos samurais praticaram o zen-budismo e o Sumi-ê. Onde um golpe de espada é único e espontâneo, não havendo chances para correções ou reflexões.



No sumi-ê a tinta é feita de fuligem e cola (sumi) e pincéis de pêlo de ovelha ou texugo (de forma que se retenha muito líquido), mas o papel é na maior parte das vezes fino e absorvente, que dá a principal característica a este tipo de pintura.
No sumi-ê pinta-se o espírito do objeto, cada traço é cheio de energia, tendo de mostrar vitalidade, vida. Shin’ichi Hisamatsu, filósofo e profundo conhecedor da arte Zen, ressalta sete particularidades que devem existir em uma obra Zen, são elas: assimetria (fukinsei), singeleza (kanso), naturalidade (shizen), profundidade (yugen), desapego (datsuzoku), quietude e serenidade interior (seijaku).




Os principais temas relacionados ao Sumi-ê são: bambus, ameixeiras, orquídeas, flores, pássaros e paisagens, não esquecendo aqueles ligados a temas religiosos como pinturas de patriarcas ou parábolas.
Existe uma tendência atual de colocar cores em algumas partes da pintura, principalmente onde a cor é uma forma de demonstração do espírito do objeto. Esse fato ocorre em muitos temas, como por exemplo, nas pétalas de flores.




Para se pintar Sumi-ê, o praticante tem que conhecer perfeitamente o objeto que vai pintar, para que não exista reflexão ou dúvida durante o processo criativo deve ocorrer uma observação quase que constante das coisas à volta, assim sua prática também traz uma consciência maior sobre a vida, pois com ela começa-se a existir uma maior sensibilidade das coisas e pessoas que nos cercam.






 Fonte: Bugei

12 de maio de 2010

Lucidez...


          A cada momento eu me sinto mais lúcido. E não, eu não falo de hoje e das conseqüências de ontem. A vida parece caminhar cada vez mais atenta, com os olhos e ouvidos bem despertos para qualquer possível incoerência. O caminho, porém, também tem seus caprichos; parece rumar cada vez mais negligente, mais falho, com uma extrema e precisa falta de reciprocidade enviada a mim, a mim como um presente. Um presente? Não, talvez aqui eu me engane – e agora sim falo de hoje e ontem.
          Não tenho a audácia, a arrogância de raciocinar se essa lucidez é boa ou má. Não, isso eu deixo para outros, até porque há tantos que sentem verdadeira paixão por raciocinar, argumentar e – mais freqüentemente – fofocar a respeito das escolhas que eu abraço: então por que perder eu mesmo tempo com essa questão? E eu seria um niilista, um parvo idiota, um bookworm (o ontem ecoa novamente!) apenas por dizer isso? Não, acho até mesmo isso perda de tempo. A beleza de um niilista é tão puramente pequena que eu prefiro desviar o olhar para as estrelas quando um deles resolve enumerar o quanto ignorou os padrões, ‘provando para todo mundo que não precisa provar nada pra ninguém’, eu apenas olho para as estrelas e meus ouvidos tentam absorver apenas o que vem delas – elas sempre têm algo melhor para dizer.
          É claro que não é uma dádiva exatamente estar cada vez mais lúcido. Hábitos antigos, antigas roupas que eu vestia e me caíam tão bem, um ajuste tão perfeito, acabam virando relíquias, pequenos volumes numa memória por demais fragmentada. Essas mesmas roupas que eu vestia sempre, que me isolavam de uma maneira deliciosamente hermética, esses hábitos que me faziam único para mim mesmo, agora me olham incomodadas quando resolvo abrir o meu baú de memórias, incomodadas talvez com a luz que cega seus olhos e mostra as teias que já formam uma nova camada de cor. Na verdade, talvez apenas uma roupa ainda aceite ser incomodada, e esta é relativamente nova, ainda não me conhece muito bem (e eu mesmo ainda a estranho). Não que eu me importe de usar a mesma sempre, mas temo pelo momento em que ela vir minha verdadeira face – que clichê mais detestável! – e então eu tenha que andar nu.
          Apenas uma questão me aflige quanto à lucidez. Não é o fato da mudança, nem a beleza dessa lucidez, nem mesmo a vontade crescente de rever Sodoma e virar uma coluna de sal. Nada disso me aflige de fato. Um niilista, apenas, se preocuparia com isso – pois afinal são eles os que mais avaliam tudo como bom ou mau –, e eu rio do niilismo. Não, o que mais me preocupa em enxergar e ouvir cada vez mais, o que me desvia a atenção enquanto me divirto com alguém interessante – interessante, aliás, demais para não receber minha atenção –, o pensamento que se deita ao meu lado sussurrante, é se toda essa clareza, essa visão, essa audição – essa lucidez – é realmente necessária.


Escrito no Jardim, em 08/05/2010.