22 de fevereiro de 2011

Pequena Lembrança

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"(...) Mas eu não podia continuar grafando no tempo a dor. (...)"
"Alguma lembrança, alguma dor é perdida realmente? (...) Lembranças são apenas enterradas. E você se torna algo além delas por um momento, enquanto acredita nisso."
Mariana Beatriz
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          Faz alguns dias eu andava na chuva. Rápido, naturalmente, protegendo-me como podia. Ancorava-me em um belo guarda-chuva, que contudo estava em parte quebrado. Com uma calma melodia nos ouvidos, assim eu caminhava.
          Mas era difícil. Talvez porque o guarda-chuva estivesse quebrado, talvez pelo vento ou outro motivo, eu ainda me molhava. Por mais rápido, furtivo, por mais que eu me esforçasse, ainda meus braços eram banhados por gotas frias que corriam até os dedos.
          E então me lembrei de ti. Dos teus muros. Do muro que habilmente construíste, da insensata teimosia em se proteger do horizonte. Lembrei-me de ti, e olhei o céu (mesmo que para isso tivesse que resistir à dor das gotas agredindo minhas pupilas), olhei o cinza, o magnífico cinza que se estendia por toda aquela tarde, que pintava as ruas, calçadas... que pintava de cinza os rostos incolores... e deixei por um momento o guarda-chuva de lado. Experimentei, provei qual era a real sensação de não me proteger das lágrimas daquela tarde.
          Confesso que hesitei. A segurança de me manter seco (ainda que isto – isto sim! – fosse uma ilusão) era atraente, o cinza e o frio eram belos, mas facilmente deixados à distância. E teu rosto me veio à mente uma vez mais.
          Fechei o guarda-chuva. Saboreei cada gota, a melodia que eu ouvia, passei a ouvi-la cantada por cada pingo de chuva que corria pelo meu rosto. Foi a tua imagem que me proporcionou aquilo. Eu havia criado uma ponte, derrubado um muro, e desejava ardentemente que tu ali também estivesses, para provares dos sabores nos quais eu me deliciava.
          Claro que não estarias ali. Mesmo que me fizesses tal companhia, muito provavelmente terias teu grande guarda-chuva bem preso aos teus dedos, os ombros encolhidos evitando o frio, escapando de cada poça tal qual num campo minado. E eu riria de ti, como de costume, mas talvez por um momento, talvez por engano, talvez por (inconsciente) intenção, por um breve momento, quando eu olhasse para o outro lado, ou estivesse absorto demais na singela chuva, talvez desviarias um pouco teu guarda-chuva, ou mesmo – e creio que tenhas força de sobra para isso – fecharias teu guarda-chuva e apreciarias o frio e o cinza de maneira sincera, mais sincera do que qualquer outro poderia apreciar.
          Faz alguns dias eu andava na chuva. Lento, pausadamente. De ti me lembrei. Por um momento, guarda-chuvas não mais existiam.

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Escrito no Circo, em 22/02/2011, às 2:45h.

Ouvindo Farewell, Apocalyptica.

Imagem:  "Inner Place 3", by Niqe

9 de fevereiro de 2011

Allegro Sustenuto

Então a luz se acendeu
No palco, pequenos passos
Cortinas abertas, a espera
Silêncio! Começa o Ato

"Eis que eu danço
Para a alvorada audaz
Que matou minhas origens
A ela oferto a canção
Nascida da minha tempestade"

E salta, e gira, e voa!
Segura-se em tal trapézio
Mas não há cordas?
A criança corre sozinha
Ouvindo a música que não soou

"Eu canto a ária infeliz
O movimento calmo
De uma enferma sonatina"

Apanhou invisível pincel
E traçou um incolor arco-íris
Ela brinca, e ri
Pois veste a fantasia mais bonita
Que seu sonho permitiu

"E abraço o céu e a terra
Que o meu peito se abriu
E dele nasceu a fênix
Mas esta, esta podia voar!

"Eis, que eu traço o fogo
Que consome as esquinas
E teço a rapsódia fria
Que ouço derramar-se nas ruas

"É o silêncio que me enleva
É o incolor que me diverte
Pois há melhor momento
Que a folha ainda branca?

"Pois então dançarei
Hei de cantar à noite
À lua pálida que me observa
A sinfonia indelicada das cores

"Hei de desenhar notas
E pintar o mais belo cenário
Até que meu espetáculo termine

"E não há ninguém que possa
Ao meu palco subir?
Há então alguma outra criança
Ou haverei de brincar sozinho?

"Cala-te! Aos estilhaços
Eu traço a rubra sonata
O silente réquiem incolor"

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Escrito no Circo, em 08/02/2011, às 03:45h.

Ouvindo Gloria, Kalafina

6 de fevereiro de 2011

Sósia

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"See me ruined by my own creations."
Romanticide, Nightwish

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Falta-me o tempo
Em que a noite era eterna
Sinto saudade das cores
Que não se pintam jamais
Das notas que não se ouvem

Dilacera-me a culpa
Por ter vivido e deixado passar
Agora aqui, contemplo
Uma cópia do meu amanhecer

Tenho saudade das palavras
Que corriam pelo papel
Das conversas inauditas
Da vontade
Eu sinto falta da tua vontade

Acima de tudo, da espera
Certo de que haveria cor
Será que então morreria
O noir cálido que nos juntou?

Falta-me mesmo o ar
O fôlego de mim fugiu
Sobrou-me o despojo
De forçar cores e sons
Em um papel rasgado
Fingindo pintar teu infinito

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I see.
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Escrito durante mais uma dança, e pintado no Circo,
em 03/02/2011, às 18:00h.

Ouvindo Gethsemane, Nightwish.

Noturno no. 1

 Como fosse dia
Abri porta e janela
Saboreei o vento
Sentei-me ao piano
E me despi das máscaras

Um Adagio, Largo
Até um Moderato
Em pianíssimos sabores
Teci a teia do tédio

E como fosse fraco
Privei-me de orgulhos
O que um fantasma diria?
Eu arranquei minhas raízes

Diatônicas lembranças perfeitas
Realidade atonal, cinza
Dissonantes me alimentam
A torpe harmonia do cotidiano

Como fosse cego
Falhei notas e trinados
Deixei nuances por fazer
Paixões a declarar

No enlevo dos graves
Ou na doçura dos agudos
Permaneci quieto
Meus dedos falavam

Cansavam-me as cadências
Previsíveis palavras, visíveis ambições
Tive asco das tônicas
Dominantes que nada valiam

E como fosse jovem
Permiti-me errar
Troquei escalas inteiras
Corações valiosos
Troquei por meros comuns

Modulei sétimas, nonas
Simples diminutas fiz
E corri, um Presto terrível
Aos graves desabei
Tentei dormir novamente

Mas era noite
Um tolo tentando renascer
Na mais silente melodia
Parou
Na vacilante fermata
Parou o tempo, sem mais notas

Como não houvesse motivo
De continuar, calei os dedos
Sem janelas nem portas
Como fosse só, adormeci

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Escrito no Circo, em 03/02/2011, à 01:40h.

Ouvindo Adagio Sustenuto da Sonata ao Luar,
de L. van Beethoven