Pois então aqui estou, no fim de mais uma tarde, sufocando o cansaço com meu próprio reflexo. A velocidade das horas, a intensidade das cores é tamanha, que às vezes me interrompo, recostado em algum repouso, para respirar e tentar olhar, ainda que furtivamente, pela fresta da fechadura da grande porta que cruzo a cada dia. Sobram-me lapsos, momentos de um espectro, sempre perto, sempre longe, em que vislumbro o clímax, o apogeu, o fortíssimo de uma peça que jamais parece evoluir. E então, como perdesse o trem na estação, salto novamente para alcançar o ritmo inevitável da rotina.
Por acaso ela, a rotina, roubou o sangue pulsante? É então assim que, tendo se acostumado com as chibatadas, o escravo cede o último átimo de dignidade? Eis que eu me renovo a cada vento noturno, mas é assim que as cicatrizes se acumularam sem que eu ao menos percebesse – e se percebi, não me esforcei com a esquiva – ?
A rapsódia dos últimos tempos, porém, talvez traga esperança: que o negro cálido ardor por ora queima, ainda que a casa esteja mal iluminada; que o grito ainda tem força; e que o coda final, ainda que curto, encerra a cadência mais pungente de todas.
Escrito em um pequeno bloco de papel, em 16/02/2012, por volta das 18 horas.
Ouvindo o trânsito por uma janela de ônibus.
Essa prosa também contém um pouco do "fugere urbem". A rotina é a mais dolorosa de nossas condenações, ao mesmo tempo em que é aquilo o que define as nossas rotinas. Precisamos repetir os acertos - e os erros, principalmente -, para aprendermos mais sobre as suas causas e efeitos, e me parece que o acúmulo de cicatrizes é inevitável, o que não quer dizer que, vez ou outra, elas, as cicatrizes, não possam desaparecer completamente.
ResponderExcluirTextos escritos no meio do trânsito são, quase sempre, fluidos, talvez porque essa seja a naturalidade de um trânsito, a aceleração, o caminhar na estrada.
Muito bom, poeta.
O que define as nossas vidas**
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