29 de maio de 2011

O Senhor das Sombras

– "Ah", disse o rato, "o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro".

– "Você só precisa mudar de direção", disse o gato, e devorou-o.

Tradução de Modesto Carone

O texto acima, intitulado Pequena Fábula, é considerado a primeira obra realmente imortal do autor checo Franz Kafka. Kafka foi um dos maiores expoentes do expressionismo alemão, e é aclamado como fundador de um estilo um tanto quanto paradoxal: o realismo mágico. Seus livros – incluindo contos, romances e narrativas medianas – são publicados e analisados à exaustão até hoje, um século depois de terem sido escritos.

Porém, Pequena Fábula não foi o primeiro texto que o autor franzino escreveu: antes dela, ele já tinha escrito inúmeras peças de teatro, consideradas hoje desprezíveis para a literatura universal. É curioso, assim, que um texto tão pequeno, aparentemente tão simples, tenha prevalecido sobre peças inteiras de teatro com o passar dos anos.

Algo interessante ocorre quando lemos vários livros de um mesmo autor: podemos notar sua evolução, seja narrativa, poética ou estilística – claro, quando essa evolução existe. Isso aconteceu comigo há pouco mais de uma semana, quando terminei O Senhor das Sombras, segundo livro da série Legado Goldshine, do autor paulista Leandro Reis.

Antes mesmo da própria narrativa, há um prefácio muito bem escrito por Raphael Draccon, autor conhecido nacionalmente no meio da literatura fantástica. A narrativa é adiada por um prólogo intenso, com uma revelação que já mostra, a quem (como eu) não gostou tanto do maniqueísmo do primeiro livro, que nesta continuação os fatos não são o que parecem ser.

A habilidade narrativa do autor melhorou muito. As cenas não são mais previsíveis, e a própria sequência dos acontecimentos é encadeada de uma forma que torna a leitura interessante do início ao fim. Os cenários também são muito bem construídos – algo que já acontecia em Filhos de Galagah, porém desta vez um pouco melhor –, e os personagens em si são muito mais reais do que antes. Um dos maiores sinais da evolução estilística de Leandro Reis é o ódio que senti por certos capítulos: fizeram me sentir mal, sufocado, como se participasse das cenas. Isso é ótimo, porque só assim podemos realmente sentir a história, não apenas conhecê-la.

Galatea, a protagonista, continua sua jornada em busca das runas sagradas, atravessando o continente, conhecendo vários povos diferentes e culturas estranhas, o que traz um certo amadurecimento a seus ideais. Ela deixa de ser, de certo modo, a guerreira que resolve tudo por meio de um belo golpe certeiro de espada. Utiliza, em alguns momentos, até mesmo de malícia para conseguir o que quer, e sua fé é sempre o elemento chave de todos os seus atos – afinal, ela é considerada a "mão" de seu deus, Radrak, entre os homens.

Ocorre que, apesar da missão sagrada de Galatea ser conhecida por muitos, nem todos a consideram válida ou mesmo necessária. Em determinada cena, um personagem de uma raça nobre, quase divina, e também idoso e sábio, contesta se tal missão não seria apenas uma disputa, um jogo entre deuses que coloca a todos em perigo. Tal contestação é obviamente repelida, mas é interessante que ocorra, pois até então ninguém contesta se tudo aquilo é justo: não havia dualidade na missão.

É interessante notar também como o autor uniu de forma simbiótica as histórias das duas personagens principais, Galatea e Iallanara. Não apenas a personalidade de Galatea é aprofundada desta vez, mas principalmente Iallanara, em todo o seu universo interior de medos, preconceitos e mágoas, é detalhada ao máximo. O que no primeiro livro foi apenas uma sombra, desta vez se torna nítido: Iallanara tem diversos problemas, sendo a maioria devido às suas próprias decisões. Ela deixa de ser uma criatura estranha entre todos, para se tornar aquela cujo passado, presente e futuro podem decidir o rumo de vários povos, aquela cujas decisões vão impactar em mudanças eternas. E, ao mesmo tempo, ela ainda é a fortaleza impenetrável, cujo interior é mais frágil que uma flor de vidro.

Outros personagens são também aprofundados, ganham personalidades mais realistas. Até mesmo alguns vilões, em todo seu antagonismo, crueldade e escuridão, demonstram motivos para o que fazem, mostram que não foram sempre manifestações do mal. Um dos vilões, inclusive, exibe uma fraqueza tão simples, tão humana, que o torna muito mais interessante, muito mais próximo aos vilões que todos conhecemos.

Talvez fique a pergunta: por que a tal Pequena Fábula de Kafka foi a introdução deste artigo?

O detalhe mais interessante que encontrei no livro, mais do que as cenas dramáticas, as dualidades etc., foi uma frase dita por uma personagem em determinada cena, em um dos primeiros capítulos: "Cuidado com o que cativa!". Todo o livro pode ser definido por essa frase. O Senhor das Sombras mostra, de uma forma que encontrei em pouquíssimos livros até hoje, o quanto essa frase é verdadeira. Cada personagem é atormentado e perseguido por aquilo que, impensadamente, cativou. Como Kafka em sua Pequena Fábula, Leandro Reis conseguiu, em apenas algumas palavras, definir toda a sua obra. Este é, para mim, o maior sinal da evolução na narrativa e, principalmente, no estilo do autor.

Há ainda, necessário dizer, um bom epílogo em O Senhor das Sombras, que deixa no leitor uma ansiedade grande pelo próximo livro. Porém, ao que tudo indica, no terceiro livro a escuridão prevalecerá como nunca antes na história, e o vazio tomará conta de todos. Esse sentimento deixado pelo epílogo, e também por alguns detalhes do segundo livro como um todo, faz com que seja quase plena a certeza de que Leandro Reis evoluiu ainda mais em Enelock, o terceiro livro e, assim, cumpriu a promessa feita em Filhos de Galagah: uma boa história, uma boa narrativa, e um estilo que deve prevalecer.

Enelock, o terceiro livro da série Legado Goldshine, já foi concluído pelo autor e deve ser lançado em breve pela Idea Editora, que também publicou os outros dois livros.

No site do autor há um conto, indicado por ele próprio, cujos acontecimentos ocorrem entre o primeiro e o segundo livro: Olhos de Herói. Vale a pena ler, é muito bem escrito.

Este artigo faz parte do Booktour do Legado Goldshine, promovido pelo autor em seu blog. Leia também o artigo do Sonata Escarlate sobre o primeiro livro da série, Filhos de Galagah

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E se você ficou curioso a respeito de Franz Kafka, e do porquê de Pequena Fábula ser tão valorizada, leia Lição de Kafka, de Modesto Carone.

14 de maio de 2011

Entrega?

Vejo que aprendi.

Na noite sempre chamei por algo, por algo que me aquecesse, que incendiasse meu peito, molhasse meus olhos. Sem resposta, sempre clamei por algo que me entendesse, ou que ao menos me enxergasse na multidão, sempre busquei aquele crescendo tão sonhado, sempre tão iminente, mas jamais consumado.

E então veio o costume, o cotidiano, a rotina, que sutilmente nublou todas as emoções e deixou tudo mais fácil. Mas eu sabia, era verdade, que eles, os sentimentos, só ficavam mais fortes no silêncio imposto, sabia que o contraponto seria um fortíssimo inevitável.

Decidi, leviano, que as chagas não cicatrizam sozinhas. Um universo inteiro eu criei, e o deixei de portas escancaradas, a quem quisesse entrar. Inevitável, alguém entrou. E mesmo quando aquele universo foi destruído e selado, esse alguém permaneceu. Todos os sentimentos até então trancafiados, tendo liberdade apenas por meio de versos dissimulados, decidiram que aquela era a oportunidade perfeita de fuga. Claro, havia alguém que escutava, que me enxergava, mesmo que a visão direta nesse caso não fosse possível.

Pois nesse momento eu me abri, e tudo escapou tão rapidamente que não foi possível esconder uma mínima parte. Tão rapidamente eu me abri, e tão prontamente alguém me escutou, que eu me esqueci da necessidade do reflexo. Da resposta. Eu não a escutei.

Parei, e deixei os ouvidos prontos. Deixei o coração aberto, pronto a receber aquele universo inteiro de sentimentos que, se não era infinitamente maior que o meu, ao menos era de igual tamanho. Mas era escassa a resposta, era preciso encontrar o caminho até ela, e por vezes esse caminho passava por uma abertura cada vez maior da minha parte. Um, dois, três... passei a contar os momentos em que eu via ao menos distante todo aquele universo.

Li certa vez que não importa o que aconteça, não importa com quem estejamos ou quais nobres sentimentos povoem nossa alma, haveremos de ser sempre criaturas sozinhas. Li que cada um é um mundo particular, e que dois mundos não coexistem no mesmo lugar. Li também que havia pontes, e que afinal é possível visitar o infinito particular de outro alguém. Desde que, claro, as portas estejam abertas.

Eu li. Mas, é fato, vejo que somente agora aprendi.


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Escrito no Circo.
Imagem: Prelúdio, de Oer-Wout.

9 de maio de 2011

A Dança

Abri os olhos
Vi ombros erguidos
Senti um rosto que riu
Dança lenta dos sentidos
Em braços que não são os meus

Parei e ouvi
É esta a canção que pedi
É este o poeta que chora
Que dilacera o peito
Ou na dança eu descobri
Mais outra máscara naquele espelho?

Fecho os olhos, sonho
Mergulho em tua voz
Deixo-me bailar nos teus dedos
Banhar-me em tua pele
Alimento-te com minha fome
E bebes do meu silêncio

Cada uma de tuas faces
Cada um de meus reflexos
Fogo, em nossas mãos
Tua calidez me embriaga
Teu frio a mim aquece
Gigantesca orquestra dos sabores

Agora devo, então devo
Abrir os olhos, encerrar-me
Novamente em meu cárcere?
Meu sempre presente inferno
Agora devo a ele voltar?

Subo o olhar, não vejo
Ombros, mãos, nem o olhar
Notas que não são minhas
Dançam em cada detalhe
Em cada nuance de meu elísio

Despi-me dos trajes
De prisioneiro do próprio lar
Aqui ficaram perfumes
E da dança sobrou a dúvida
É este o poeta que ri,
Ou aqui nasceu o pássaro
Que aos teus braços voa
Que ao Sol lança suas asas?
À noite alça seu vôo
Jamais pousa, jamais dorme
Jamais, incansável bailarino
No ardente ballet singelo
Da tua dança, intensa,
Do meu peito, renascido.

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Dançado no elísio, escrito no Circo,
em 08/05/2011.

Ouvindo Opposites Attract,
da trilha sonora do filme Black Swan

Imagem: Swan Pose por Alex Mandra,
em concept art para o filme Black Swan