"(...) Mas eu não podia continuar grafando no tempo a dor. (...)"
"Alguma lembrança, alguma dor é perdida realmente? (...) Lembranças são apenas enterradas. E você se torna algo além delas por um momento, enquanto acredita nisso."
Mariana Beatriz
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Faz alguns dias eu andava na chuva. Rápido, naturalmente, protegendo-me como podia. Ancorava-me em um belo guarda-chuva, que contudo estava em parte quebrado. Com uma calma melodia nos ouvidos, assim eu caminhava.
Mas era difícil. Talvez porque o guarda-chuva estivesse quebrado, talvez pelo vento ou outro motivo, eu ainda me molhava. Por mais rápido, furtivo, por mais que eu me esforçasse, ainda meus braços eram banhados por gotas frias que corriam até os dedos.
E então me lembrei de ti. Dos teus muros. Do muro que habilmente construíste, da insensata teimosia em se proteger do horizonte. Lembrei-me de ti, e olhei o céu (mesmo que para isso tivesse que resistir à dor das gotas agredindo minhas pupilas), olhei o cinza, o magnífico cinza que se estendia por toda aquela tarde, que pintava as ruas, calçadas... que pintava de cinza os rostos incolores... e deixei por um momento o guarda-chuva de lado. Experimentei, provei qual era a real sensação de não me proteger das lágrimas daquela tarde.
Confesso que hesitei. A segurança de me manter seco (ainda que isto – isto sim! – fosse uma ilusão) era atraente, o cinza e o frio eram belos, mas facilmente deixados à distância. E teu rosto me veio à mente uma vez mais.
Fechei o guarda-chuva. Saboreei cada gota, a melodia que eu ouvia, passei a ouvi-la cantada por cada pingo de chuva que corria pelo meu rosto. Foi a tua imagem que me proporcionou aquilo. Eu havia criado uma ponte, derrubado um muro, e desejava ardentemente que tu ali também estivesses, para provares dos sabores nos quais eu me deliciava.
Claro que não estarias ali. Mesmo que me fizesses tal companhia, muito provavelmente terias teu grande guarda-chuva bem preso aos teus dedos, os ombros encolhidos evitando o frio, escapando de cada poça tal qual num campo minado. E eu riria de ti, como de costume, mas talvez por um momento, talvez por engano, talvez por (inconsciente) intenção, por um breve momento, quando eu olhasse para o outro lado, ou estivesse absorto demais na singela chuva, talvez desviarias um pouco teu guarda-chuva, ou mesmo – e creio que tenhas força de sobra para isso – fecharias teu guarda-chuva e apreciarias o frio e o cinza de maneira sincera, mais sincera do que qualquer outro poderia apreciar.
Faz alguns dias eu andava na chuva. Lento, pausadamente. De ti me lembrei. Por um momento, guarda-chuvas não mais existiam.
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Escrito no Circo, em 22/02/2011, às 2:45h.
Não há receitas, recomendações a serem ditas ou feitas. Entregar-se ao outro, isso é o suficiente para o que se deseja: amor e felicidade.
ResponderExcluirLindas palavras, como a chuva que escorre carregada de sensações, pode-se sentir em cada gota o solfejar que vem do coração.
ResponderExcluirSofia Geboorte
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Abçs