20 de janeiro de 2010

Palavras e Disritmia


Alguém conhece José Ribamar Coelho Santos? Não! Mesmo se eu dizer que ele nasceu em Arari, Maranhão no dia 11 de abril de 1966, sendo um ótimo cantor, compositor e músico de MPB? Nada ainda!?
Bom talvez conheça Zeca Baleiro!
Viu?! Como não conhece-lo, suas músicas já fizeram parte de novelas, trilhas sonoras, de um término de namoro anônimo, ou até mesmo daquele porre que você gostaria que continuasse anônimo, todo mundo já cantou ou ouviu uma música sua em algum momento da vida.
Com uma voz gostosa, ao qual não me atrevo descrever qual é a sensação de ouvir, e letras que remetem ao dia-a-dia, ao amor, as coisas da vida que nos passam despercebidas, ou ainda protestos interessantes sobre coisas que vemos todos os dias, ele faz um som complexo e simples, com aquele jeito MPB, mas ainda sim único.
Não me atrevo a colocar uma biografia aqui, até porque vale mais a do próprio Zeca Baleiro, que sem mais escreve bem melhor que eu. Vale a pena conferir o som e a biografia!



Discografia


















Coletâneas e trilhas


Brésil


Calor do Brasil


Metamophoses


MPBZ by Marco Mazzola


Novo Canto


O Melhor do Acústico MTV


Palco MPB






Site Oficial, com um visual legal e com algumas coisas bem bacanas de se conferir!



Vídeo






13 de janeiro de 2010

Azul-cobalto


Havia então uma cidade, de clima um pouco frio, cujos cidadãos eram em sua grande maioria pintores habilidosos. Cada um havia desenvolvido um estilo próprio, mas havia também um estilo próprio da cidade. Naturalmente, como a pintura era muito comum, era também muito apreciada, de modo que era um costume já muito antigo dos cidadãos que, ao conhecer uma pessoa – e principalmente conhecê-la mais profundamente –, fosse dada uma pintura a essa pessoa. No começo, esse costume era mais freqüente entre pessoas que já se conheciam há um certo tempo, mas ultimamente os cidadãos daquela cidade vinham presenteando uns aos outros mesmo quando se conheciam muito pouco, e, cada vez mais freqüentemente, mesmo sem se conhecerem.

Havia então nessa cidade, algumas vezes por ano, concursos de quais pinturas, quais quadros, eram mais coloridos, ou maiores de tamanho, ou cujas cores eram mais vivas, ou qualquer outro critério que fosse criado, e cada cidadão – naturalmente apenas aqueles que haviam sido presenteados com quadros novos – vinha então ao centro da cidade e exibia o quadro que havia recebido de presente ou – no caso daqueles cidadãos particularmente mais populares, e já eram muitos – os vários quadros que havia recebido de presente. Porém, nos últimos tempos ficava cada vez mais difícil, e isso já era bem percebido por todos, apesar da maioria fingir ignorar o fato, identificar qual era o autor do quadro vencedor em cada concurso, porque era uma prática cada vez mais comum não assinar a pintura antes de dá-la de presente a alguém, e havia até um grupo de cidadãos – apesar de não ser um grupo exatamente definido, e ninguém saber ao certo quem pertence a ele, de certo que é um grupo – cuja corrente de pensamento afirmava que quanto menos o pintor em questão colocasse sua identidade nas pinceladas e nas cores, tanto melhor. Assim, já há um bom tempo esses concursos terminavam da mesma forma: os cidadãos mordiam as unhas na ansiedade de saber qual quadro era o melhor, a decisão era anunciada, e todos esperavam que o autor do quadro se manifestasse. E nada.

E então todos se voltavam para o segundo melhor que, sem exceção, em todos os concursos, todos até já sabiam e tiravam as unhas da boca, e alguns mais sinceros até se dirigiam já para suas casas, possuía um traço característico, ou mais precisamente, uma cor característica, pois não havia traços muito bem definidos, e um braço magro, esbelto e liso se levantava na multidão, seguido de uma voz suave e melodiosa que reclamava a autoria do quadro. A pintora então andava pela multidão até o palco central, subia as escadas com uma emoção contida, e segurava seu quadro, sua pintura, a seu lado, ela própria sendo uma obra de arte como todos conceberiam, como todos imaginariam a mais bela musa, e então ela olhava para todos buscando quem recebera de suas mãos aquele quadro, para lhe agradecer e lançar o conhecido olhar singelo, sublime e, infelizmente para a outra pessoa, muito rápido, antes de agradecer à multidão por terem escolhido seu quadro como o melhor.

Naturalmente que o quadro da pintora não era o melhor, mas sim o segundo melhor, todos sabiam disso e ponderavam consigo mesmos essa verdade, mas ninguém se atrevia a lançá-la a público, pois ninguém se atrevia também a contar quantos naquela cidade já haviam sido presenteados com os quadros daquela mulher. De modo que todos aplaudiam com uma emoção contida, por vários minutos, até que a pintora descia do palco e se dirigia para aquela pessoa a quem ela dera o quadro, e entregava-o a ela, com um doce e rápido beijo no rosto. E então aquele braço esguio se erguia e, com uma graciosidade particular e certeira, fazia um aceno de adeus. Todos sabiam, com aquele gesto, que a pintora não seria vista por vários dias, até que retornasse, e conhecesse alguém, e lhe fizesse outra obra-prima. E então haveria outro concurso, e essa obra-prima alcançaria o segundo lugar.

Esses concursos eram bem populares na cidade, eram as datas mais importantes. O anúncio do quadro vencedor era sempre feito no horário de almoço, para que todos pudessem assistir sem deixar suas atividades de lado, e mesmo assim a cidade inteira comparecia. Havia, porém, uma falta naquelas ocasiões.

Pois havia naquela cidade também uma desenhista, cujo traço era mais definido e mais nítido do que o de qualquer pintor, e cujos desenhos haviam circulado por todos da cidade, apesar de poucos terem tido a honra de recebê-los das mãos da própria desenhista. A desenhista morava numa casa muito diferente das outras, muito mais simples e com menos detalhes nos telhados, mas as cores com que a casa havia sido pintada eram sem dúvida as melhores. Isso porque a desenhista sempre fora, como todos sabiam, a maior e mais íntima amiga da pintora, e esta, como presente de aniversário, havia pintado há alguns anos a casa inteira da desenhista. De modo que a pintura da casa era tão bela, e a casa tão paradoxalmente simples, que havia se tornado uma espécie de atração turística da cidade. Alguns cidadãos gostavam bastante de subir aquela última rua, a deserta, de contornar a curva cercada de abetos e então ver aquelas cores tão vivas e pungentes, refletindo como fogo a luz do sol.

Não que a desenhista gostasse de morar num ponto turístico. Ela inclusive repelia como podia esses cidadãos, no começo simplesmente saindo de sua casa e gritando, ou com cachorros, mas no último ano ela descobrira uma maneira especial de mantê-los afastados. Ela então plantou, em todo o contorno do terreno da casa – porque afinal eles poderiam vir também da parte de trás da casa, ela sabia, as pessoas que se propunham a vigiar sua vida eram particularmente hábeis em encontrar novas maneiras, e tinham uma disposição incomum para isso –, e plantou também na curva que dava para a entrada do jardim, espinheiros muito cerrados, que não impediam de qualquer maneira que alguém realmente determinado visse a casa, mas bloqueavam de todo a passagem até a casa. Ela evitava assim o extremo incômodo de atender cidadãos curiosos para ver o interior da casa, especialmente porque quando isso acontecia ela era obrigada a presenciar o espanto deles quando viam que os cômodos eram todos pintados de cinza.

E assim sempre ocorria, a cidade se reunia de tempos em tempos com seus melhores quadros, a pintora ganhava em segundo por não se saber o autor do melhor quadro, ela se despedia, e todos então percebiam que a desenhista não estava lá. Depois de algum tempo, as pessoas já nem faziam essa última constatação. Já não era necessária, a presença da desenhista era algo tão improvável, tão absurdamente contra o normal, que as pessoas simplesmente perguntavam, depois de alguns dias, se alguém havia visto naquele último concurso a desenhista. E a resposta era sempre a mesma.

Esses cochichos chegavam aos ouvidos da desenhista, porque afinal era para a sua casa que a pintora sempre se dirigia depois de tais concursos. As duas conversavam por horas a fio, comendo batatinhas fritas, até o cair da noite, e depois até que os pássaros anunciassem a manhã, e então elas iam dormir, a desenhista em seu quarto cinza, e a pintora em um quarto feito já para ela, o único cômodo a cores. Esse era um segredo muito bem guardado por ambas, pois a cidade inteira especulava arduamente para onde iria a pintora durante aqueles dias em que ninguém a via, e portanto as duas desfrutavam de vários dias de paz.

Ultimamente, porém, a pintora vinha se sentindo infeliz com a falta de cores dos outros cômodos da casa da desenhista, e sugeria que iria pintá-los, como havia feito com o exterior da casa e com seu quarto. A desenhista sempre recusava a oferta, obviamente, alegando que o cinza era sua maior paixão, e que afinal não era o mesmo cinza que preenchia os cômodos. Cada cômodo, segundo ela, possuía um cinza diferente, ora mais claro, ora mais escuro, e ela chegava a afirmar que até mesmo havia matizes diferentes entre os diferentes cinzas. A pintora ria, naturalmente, de tal alegação, e então mostrava a beleza das cores de seu quarto, como eram vivas, tão belamente misturadas umas às outras, e apontava logo depois para os desenhos em tons cinza da desenhista, que ficavam pendurados nos corredores e nos quartos, e mostrava sua incompreensão com o cinza. A desenhista ria também, em resposta, mostrando sempre no quadro – no único quadro, aliás, que a pintora havia feito e guardado para si – colorido, pendurado no quarto da pintora, como seus traços não eram definidos, como as cores se confundiam e anulavam as formas, e mostrava os seus próprios desenhos, cujo contorno e traço eram reconhecidamente os mais definidos da cidade. A pintora mudava de assunto por um tempo, mas logo as duas voltavam a discutir, com outro pote de batatinhas fritas na mesinha de centro, sobre a intensidade das cores e sobre traços definidos. A desenhista expunha então seu desprezo pela intensidade e vivacidade das cores dos quadros exibidos pela cidade – afinal ela às vezes saía de sua casa para comprar sua comida, ou outros itens de necessidade, e principalmente os lápis, borrachas, crayons, bicos de pena e, mais raramente, um bom suprimento de nanquim para que pudesse continuar sua arte incomum – e dizia que era cada vez mais difícil identificar nestes quadros qualquer forma, perspectiva ou profundidade, mesmo que abstratas, e por isso era cada vez mais insuportável para ela sair de sua casa e encontrar aquelas telas com matizes disformes. Ainda mais porque a única cor de que ela realmente gostava, o azul-cobalto, era cada vez mais raro nos quadros da cidade. A pintora, um tanto quanto tímida quanto a tais observações – ainda mais porque havia muito tempo ela mesma não usava o tal azul-cobalto –, mudava de assunto e mostrava o esboço de algum quadro novo que estava fazendo para outro alguém que havia conhecido, e quando a desenhista mostrava algum interesse no esboço a pintora chegava até a dá-lo para ela, se já fosse um esboço, um estudo finalizado, e ela estivesse enfim pronta para começar a obra de fato. E assim as duas conversavam por dias, e então a pintora partia para começar outra obra-prima.

Enquanto pintava, porém, ela costumava pensar – e esse pensamento se tornava cada vez mais freqüente, a cada novo quadro – nos porquês da desenhista odiar tanto as cores, ser tão avessa a elas, que para a pintora eram como flores, vestiam seu corpo e a faziam se sentir deusa, rainha, selvagem, e tantas outras sensações que lhe ocorriam como torrente e chama enquanto pintava. E pensava que, talvez, a desenhista jamais houvesse usado mesmo um pincel com alguma tinta colorida, e que assim tivesse medo, ou mesmo pavor, de fazê-lo. Talvez a desenhista havia se acostumado tanto ao cinza que seus olhos não podiam mais ver a luz e beleza das cores. Afinal, que importância tão grande era essa que ela dava para os traços e contornos, se as cores já preenchiam o olhar de qualquer um de maneira tão intensa que não era possível sequer pensar em contornos? A pintora ponderava, mas jamais descobria realmente os motivos da desenhista e seu cinza.

Até que lhe ocorreu um fato inusitado. Depois de mais um concurso, e mais um prêmio, depois de andar como imperatriz das cores até a casa da desenhista, de cumprimentá-la e enfim entrar em seu quarto colorido, ela sentiu sede. Claro que a sede não foi de maneira alguma inusitada, mas no corredor ela viu uma porta semi-aberta e, sem qualquer curiosidade, apenas como a criança que pisa a formiga sem qualquer razão, abriu a porta e se deparou com um armário. Isso, claro, também não foi inusitado. A porta bateu então na prateleira mais próxima, e uma pequena bisnaga caiu no chão. A pintora se inclinou, pensando se tratar de algum tipo de nanquim em bisnaga, algo estranho mas claramente a única opção, e se surpreendeu ao ver as palavras “vermelho sangue” na bisnaga. Estava então a desenhista usando cores? Ela, que quase idolatrava o cinza, que tecia longos argumentos sobre a beleza do preto misturado ao branco, estava usando uma cor, e logo uma cor tão viva? A pintora guardou então a bisnaga na prateleira, descobrindo com mais surpresa ainda que não havia outras bisnagas ali, apenas a vermelho sangue, e foi enfim matar sua sede, que já desaparecera por completo. E a partir de então, em cada conversa com a desenhista, quando esta defendia o cinza, a pintora ria e suspeitava com seus botões, ria da hipocrisia da desenhista e suspeitava dos motivos de esconder que ela enfim havia se rendido às cores. E então ela comia com mais vontade as batatinhas, como se assistisse a um espetáculo, um filme de suspense, e se sentia uma Sherlock Holmes investigando um mistério indecifrável.

E vieram as noites, e vieram os dias, e então ela partiu, e veio outro concurso, e ela voltou. E procurou naquela prateleira pelo vermelho sangue, mas não o encontrou. E então ela andou discretamente, enquanto a desenhista cuidava de suas flores brancas, pela casa, vasculhando cada armário, cada prateleira, cada gaveta, mas não encontrou nada. E então restou apenas o ateliê, aquele quarto que a desenhista recusava-se a abrir, mesmo que para a pintora. Nada era mais óbvio.

Como a criança que queima a formiga com uma lupa, como quem não quer nada, ela abriu a porta, que para sua surpresa não estava trancada. Pequenos recortes em papel se dependuravam do teto, marionetes com expressões que ela não entendia estavam deitadas em uma mesa, bonecos que ela sabia que a desenhista usava como modelos – algo tão irracional para ela, ela que estava acostumada a ignorar as proporções – se assomavam em um armário, vários e vários dos seus próprios esboços pendurados em uma pequena parede e, no canto mais próximo, um armário – trancado – contendo inúmeros lápis, inúmeros crayons, todos naturalmente pretos, e inúmeros bicos de pena, com as mais variadas formas. E no centro, bem no centro daquele ateliê iluminado por várias janelas, estava a prancheta, tão estranha para a pintora – tão acostumada a cavaletes e telas –, e sobre ela uma grande folha de papel com mais um desenho tão bem definido, tão recheado de cinza que ela logo se enjoou dele e olhou em volta. Ora, ela havia uma única vez entrado naquele ateliê, além desta vez, havia muito tempo, e de tudo aquilo ela se recordava muito bem, com exceção de uma pequena caixa de madeira ao lado do armário de instrumentos de desenho. Ela olhou então pela janela e se certificou de que a desenhista ainda se entretinha com suas flores brancas, e abriu a caixa. Várias bisnagas, das mais variadas cores, se amontoavam em um lado, enquanto inúmeros pincéis, em sua maioria finos – afinal os que a pintora menos usava – se espalhavam pelo outro lado da caixa. Ela escutou então a porta de tela da cozinha se abrir, e fechou rápido a caixa e o ateliê. E voltou para sua tão adorável amiga, para mais uma rodada de batatinhas fritas. Por meio de perguntas tão sutis quanto objetivas, ela tentou fazer a desenhista revelar, sem querer, que usava realmente cores. E tentou convencê-la mais uma vez da beleza das cores, ouvindo porém desta vez não com risos ou suspeitas a defesa do cinza, mas sim com um certo escárnio e uma certa raiva – afinal por que a desenhista não lhe revelava que usava cores, a ela, pintora premiada inúmeras vezes, que havia encantado e hipnotizado multidões com a intensidade e vivacidade de suas cores?

E quando, dias depois, ela se debruçava sobre mais uma futura obra-prima, e sua cabeça fervilhava de suposições sobre a desenhista e suas cores escondidas, ocorreu-lhe um pensamento genial. Afinal, se a desenhista usava realmente cores, ainda que de maneira totalmente tímida, então ela realmente as apreciava. E se as apreciava, então realmente haveria forçosamente de se enjoar do cinza. Porque, uma vez que seus olhos se banhassem em vermelho, em amarelo, em verde, em violeta, ela jamais iria querer a indiferença vazia do cinza. O cinza era belo, a pintora tinha de admitir, mas era muito pouco. E, se era muito pouco, e se a desenhista haveria de um dia se enjoar do cinza, e então ela detestaria os cômodos de sua própria casa, então a desenhista ficaria imensamente feliz de ter seus cômodos renovados com a vivacidade das cores que só a pintora era capaz de criar. E então a pintora comprou para si um bom estoque de tintas, e de rolos e de pincéis, e planejou sua surpresa. Descobriu, porém, depois de refletir um pouco, que não conseguiria afinal pintar a casa toda sem que a desenhista percebesse. Teria de pintar um dos cômodos, e esperar a resposta. E qual cômodo seria? Nada era mais óbvio.

Assim, depois de mais um concurso, e de mais uma vitória por não haver autor definido para a melhor pintura, ela apanhou seu suprimento de tintas e rolos e pincéis e os levou consigo até a casa da desenhista. Disse à ela que ia apenas pintar uma das paredes de seu próprio quarto, afinal se enjoara das cores que havia pintado antes, e esperou que a desenhista saísse – porque a pintora sabia que a desenhista não suportava sequer o cheiro das tintas – e foi até o ateliê. Pensou por qual parede começaria, onde colocaria os móveis para que não os manchasse, se pintaria também o teto e o chão, e decidiu que pintaria as paredes e também os móveis, afinal aquele cinza estranho dos móveis era monótono demais. E então começou, e pintou como nunca antes, com as combinações mais vivas, mais intensas, e como nunca antes as cores pareciam percorrer seu corpo e banhá-la em um universo de sensações, um banho de turquesas e esmeraldas e rubis, e sóis amarelos e brilhantes como ouro, e papoulas incendiárias, e campos tão verdes, tão verdes que os olhos lhe doíam, e ela adorava essa dor.

E, como a noite começava a despontar no horizonte, ela se apressou e terminou a obra-prima das obras-primas. Deleitando-se com os reflexos que o último raio de sol espalhou pelo ateliê, ela concluiu a pintura, e se dirigiu para a sala, à espera da desenhista. Quando esta chegou, as duas conversaram novamente, e uma vez mais a pintora tentou convencer a desenhista de que o cinza não bastava. A desenhista novamente se defendeu, e as duas foram dormir, a pintora ansiosa pela manhã, quando levaria a desenhista para seu novíssimo ateliê.

E passaram as horas, e a noite passou, e o sol descobriu mais uma vez o mundo. Aqueles olhos naquele quarto colorido, antes o único a cores da casa, mal se abriam quando um grito ecoou pela casa. A pintora correu, subiu as escadas como flecha até o ateliê – ela sabia que só poderia vir dali, e borbulhava de alegria, e de ansiedade, afinal sua mais adorada amiga partilharia com ela da beleza das cores, com ela se banharia em mil sóis – e atravessou a porta sem olhar. Foi quando aqueles olhos se deteram na desenhista. Ela estava no centro, apoiada na prancheta, mão sobre a boca, joelhos implorando uma força que parecia não existir, e olhos ofuscados e embotados pelas lágrimas que lhe inundavam a face. Ela olhava desesperada de uma parede a outra, de um armário a outro, de um detalhe a outro, até que viu a pintora. E então correu até ela, e a empurrou para fora do ateliê, e fechou a porta. A pintora tentou abri-la, pedindo compreensão da desenhista, mas estava trancada. Ela tentou argumentar, mas parou para ouvir. E ouviu passos, uma caixa sendo aberta, silêncio, e o barulho inconfundível de um corpo caindo solto pelo chão. Ela tomou impulso, gritou como nunca antes havia gritado, e com os braços e pés e ombros se jogou contra a porta.

A desenhista estava deitada, como uma de suas marionetes jogada de canto, com as pernas umas sobre as outras, com bisnagas de tintas multicoloridas em volta de si, e bebia incessantemente de cada uma das bisnagas, violentamente ela apertava as bisnagas até que não houvesse mais amarelo-ocre, ou vermelho-carmim, ou azul-turquesa, e então passava a outra. A pintora, imóvel, não entendia, e com força renovada tentou arrancar daquelas mãos tão brancas a última bisnaga. E percebeu que a desenhista não a encarava. Não encarava nada em volta, antes fitava outro lugar. A pintora acompanhou o olhar e viu, na parede ao lado da porta, a parede que ela tinha deixado por último no dia anterior. E viu, horrorizada, que as suas pinceladas escorriam como se alguém tivesse jogado óleo de linhaça sobre elas, e viu também, assustada, que abaixo daquelas cores vivas e intensas, e ainda abaixo do cinza costumeiro, era possível distinguir um céu azul. Ela arranhou como pôde, sem nem saber por quê, a parede, até descobrir, abaixo da vida de sua própria cor, e abaixo do aparente cinza da desenhista, um céu, e montanhas, e um campo, e um belo lago azul, e em sua margem uma mulher, com um inconfundível traje, com a roupa nobre de uma imperatriz de cores. E enquanto as lágrimas, como dispersas pinceladas, escorriam pela sua face, ela ouviu o sussurro da desenhista. Em suas mãos tão brancas, abaixo de suas unhas pintadas de preto, escorria um azul profundo. E naquelas mãos estava a última bisnaga, vazia, a única que a desenhista não precisou tragar com ferocidade. E passou os braços por aqueles ombros tão brancos, tão frágeis, e ouviu novamente o sussurro. “São suas. As cores. São suas” ela ouviu, a voz tão fraca e tão pungente, certeira como uma flecha em fogo consumida, e a abraçou mais forte, até que o último suspiro se esvaísse pelos seus braços. Em lágrimas ela deitou a desenhista à sua frente, e tirou a última bisnaga de suas mãos.

E leu, em letras manchadas, a cor que se espalhava por aquele lago tão unicamente pintado, e enfim percebeu que aquele contorno, aquele traço que envolvia a mulher na margem do lago, era o mais definido de todos, que jamais houve uma união tão bela, tão intensa, e afinal tão viva, do cinza com as cores, e segurou uma última vez aquela mão tão branca, enquanto escorriam pelos seus dedos os restos de um azul-cobalto.

8 de janeiro de 2010

Vênus em letras...



Às vezes você está conversando, e são conversas tão complexas que você prefere se abster do assunto, não por que você não tenha um conhecimento, mas pelo simples fato de que não está muito afim.
O tema discutido era sobre as mulheres na poesia, e parei para pensar na relação entre os poetas e as poetisas, em geral, os poetas obtem uma maior exposição do seu trabalho do que as poetisas. Não estou falando de uma guerra de sexos entre qual é capaz de escrever melhor, não, apenas me chama a atenção, até tempos atrás as mulheres antes eram esposas, depois donas de casa, mulheres e somente a partir daí elas podiam ser simplesmente elas.
Vivendo à margem, elas observaram, e quando colocaram tudo que viam em palavras, simplesmente brilharam, ainda que de forma anônima. Então coloco aqui a história de três autoras brilhantes.




A primeira vez que li e decorei um poema, que me apaixonei por um poema foi lendo Florbela Espanca, o nome do poema era "Eu".
Ela nasceu em Vila Viçosa em 8 de dezembro de 1894, poetisa portuguesa teve uma vida agitada e inquieta, precursora do movimento feminista no seu país, ela transformava seus pesadelos e inquietações em poemas íntimos, femininos e erotizados.

Era filha de Antonia da Conceição Lobo com João Maria Espanca, mas sua mãe sendo empregada, o pai não a reconheceu, mas após a morte de sua mãe Florbela passa a ser criada por seu pai e a esposa dele, Maria Espanca. João Maria só veio reconhecer a paternidade anos após a morte de Florbela.

Casou-se três vezes, a primeira vez foi em 1913 (no dia de seu aniversário) com Alberto Moutinho.
Concluiu o curso de Letras em 1917, e inscreveu-se depois no curso de Direito, sendo a primeira mulher a frequentar este curso na Universidade de Lisboa.

No ano da publicação de "Livro de Mágoas" sofre um aborto involuntário (1919), passando a apresentar sintomas de desequilibrio mental.
A partir da separação em 1921, passou a encarar preconceito social decorrente da separação, casando no ano seguinte com Antonio Guimarães.

Em 1923 é publicado "Livro de Sóror Saudade". Após sofrer novo aborto, seu marido se divorciou, e em 1925 ela casa-se novamente, com Mário Lage.
A morte de seu irmão em um acidente de avião a deixa abalada e leva-a a escrever "As Máscaras do Destino".

Após ser diagnosticado um edema pulmonar ela se suicida no dia do seu aniversário, 8 de dezembro de 1930. Antes já havia tentado suicídio por duas vezes em outubro e novembro de 1930, às vésperas da publicação de sua maior obra "Charneca em Flor", que foi publicado em janeiro de 1931.

Poemas:

Eu...

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...
Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...
Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!


Charneca em Flor


Enche o meu peito, num encanto mago,
O frémito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...

Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!

E, nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu bruel,
E já não sou, Amor, Soror Saudade...

Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!

Volúpia

No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade...
A núvem que arrastou o vento norte...
Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...

Links:




Outra cujo contato é inevitável é Clarice Lispector, a leitura de seus livros cai em alguns vestibulares, além de ser estudada no ensino médio. Então, conheci ela do pior jeito possível, sendo obrigada a ler para fazer uma prova, mas passei a respeitá-la tempos depois quando vi uma entrevista sua, e sua personalidade forte me conquistou, me fazendo entender o que até então estava obscuro: a essência de seus escritos.
Clarice Lispector nasceu em Tchetchelnik em 1920, mas passou sua infância no Recife, mudou-se em 1937 para o Rio de Janeiro, onde formou-se em Direito.
Seu romance de estréia "Perto do Coração Selvagem" em 1943, teve calorosa acolhida e recebeu o Prêmio Graça Aranha.
Casou-se em 1944 com um diplomata, e em Nápoles serviu em um hospital durante os últimos meses da Segunda Guerra.
Esteve viajando pela Suíça e Estados Unidos, voltando a morar no Rio de Janeiro.
Suas obras de destaque são:

- A Legião Estrangeira (1964);



A partir de 1942 começou a colaborar com a imprensa, trabalhou na Agência Nacional e nos jornais A Noite e Diário da Noite, colunista no Correio da Manhã, entrevistas na Manchete, cronista do Jornal do Brasil. Textos estes que se encontram reunidos no volume "A Descoberta do Mundo".

A crítica francesa Hélène Cixous diz:
" Se Kafka fosse mulher. Se Rilke fosse uma brasileira judia nascida na Ucrânia. Se Rimbaud tivesse sido mãe, se tivesse chegado aos cinquenta. (...) É nessa ambiência que Clarice Lispector escreve. Lá onde respiram as obras mais exigentes, ela avança. Lá, mais à frente, onde o filósofo perde fôlego, ela continua, mais longe ainda, mais longe do que todo o saber".

(Clique para uma biografia mais que completa sobre a escritora)

Frases:

"Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro."

"Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite."

"Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas... continuarei a escrever"

"Já que se há de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas."

"Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome."
(Perto do Coração Selvagem)

"E o que o ser humano mais aspira é tornar-se ser humano"

"Quando se ama não é preciso entender o que se passa lá fora, pois tudo passa a acontecer dentro de nós."

"É difícil perder-se. É tão difícl que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo."

"... passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser."

Entrevista:

Parte 1


Parte 2


Parte 3


Parte 4


Parte 5


E por fim, deixei a recente descoberta por último, arrumando um monte de revistas, nestes encontros ao acaso com reportagens que você se surpreende encontrei Sylvia Plath, e uma crítica sobre o filme inspirado em sua vida. Fui buscá-la e quando encontrei, foi inevitável o deslumbramento.


Nascida em Boston, em 1932. Passou rapidamente por Nova York, tentou o suicídio mais de uma vez.
Em 1956 casou com o poeta inglês Ted Hughes, e com ele foi para Cambridge, Inglaterra. tiveram dois filhos. Separou-se em 1962. Em 1960 lançou seu primeiro livro "Colossus".
Em 11 de fevereiro de 1963, aos 30 anos de idade cometeu suicídio inalando gás de cozinha na sua residência.


Obras:

The Colossus, 1960
The Bell Jar, 1963
(pseudonym Victoria Lucas)
Harper and Row, 1971
(edition apparently contains drawings by Plath and a Biographical Note by Lois Ames)
Ariel, 1965
Crossing the Water, 1971
Winter Trees, 1971

Poemas:


PALAVRAS

Golpes
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.
A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
Sobre a rocha
Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro
Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.
(tradução de Ana Cristina César)


ARIEL

Estancamento no escuro
E então o fluir azul e insubstancial
De montanha e distância.
Leoa do Senhor como nos unimos
Eixo de calcanhares e joelhos!... O sulco
Afunda e passa, irmão
Do arco tenso
Do pescoço que não consigo dobrar.
Sementes
De olhos negros lançam escuros
Anzóis...
Negro, doce sangue na boca,
Sombra,
Um outro vôo
Me arrasta pelo ar...
Coxas, pêlos;
Escamas e calcanhares.
Branca
Godiva, descasco
Mãos mortas, asperezas mortas.
E então
Ondulo como trigo, um brilho de mares.
O grito da criança
Escorre pela parede.
E eu
Sou a flexa,
O orvalho que voa,
Suicida, unido com o impulso
Dentro do olho
Vermelho, caldeirão da manhã.
(tradução de Ana Cândida Perez e Ana Cristina César)


A CHEGADA DA CAIXA DE ABELHAS

Encomendei esta caixa de madeira
Clara, exata, quase um fardo para carregar.
Eu diria que é um ataúde de um anão ou
De um bebê quadrado
Não fosse o barulho ensurdecedor que dela escapa.
Está trancada, é perigosa.
Tenho de passar a noite com ela e
Não consigo me afastar.
Não tem janelas, não posso ver o que há dentro.
Apenas uma pequena grade e nenhuma saída.
Espio pela grade.
Está escuro, escuro.
Enxame de mãos africanas
Mínimas, encolhidas para exportação,
Negro em negro, escalando com fúria.
Como deixá-las sair?
É o barulho que mais me apavora,
As sílabas ininteligíveis.
São como uma turba romana,
Pequenas, insignificantes como indivíduos, mas meu deus, juntas!
Escuto esse latim furioso.
Não sou um César.
Simplesmente encomendei uma caixa de maníacos.
Podem ser devolvidos.
Podem morrer, não preciso alimentá-los, sou a dona.
Me pergunto se têm fome.
Me pergunto se me esqueceriam
Se eu abrisse as trancas e me afastasse e virasse árvore.
Há laburnos, colunatas louras,
Anáguas de cerejas.
Poderiam imediatamente ignorar-me.
No meu vestido lunar e véu funerário
Não sou uma fonte de mel.
Por que então recorrer a mim?
Amanhã serei Deus, o generoso – vou libertá-los.
A caixa é apenas temporária.
(tradução de Ana Cândida Perez e Ana Cristina César )



40 GRAUS DE FEBRE

Pura? Que vem a ser isso?
As línguas do inferno
São baças, baças como as tríplices
Línguas do apático, gordo Cérbero
Que arqueja junto à entrada. Incapaz
De lamber limpamente
O febril tendão, o pecado, o pecado.
Crepita a chama.
O indelével aroma
De espevitada vela!
Amor, amor, escassa a fumaça
Rola de mim como a echarpe de Isadora, e temo
Que uma das bandas venha a prender-se na roda.
A amarela e morosa fumaça
Faz o seu próprio elemento. Não irá alto
Mas rolará em redor do globo
A asfixiar o idoso e o humilde,
O frágil
E delicado bebê no seu berço,
A lívida orquídea
Suspensa do seu jardim suspenso no ar,
Diabólico leopardo!
A radiação faz que ela embranqueça
E a extingue em uma hora.
Engordurar os corpos dos adúlteros
Tal qual as cinzas de Hiroshima e corroê-los.
O pecado. O pecado.
Querido, a noite inteira
Eu passei oscilando, morta, viva, morta, viva.
Os lençóis opressivos como beijos de um devasso.
Três dias. Três noites.
água de limão, canja
Aguada, enjoa-me.
Sou por demais pura para ti ou para alguém.
Teu corpo
Magoa-me como o mundo magoa Deus. Sou uma lanterna —
Minha cabeça uma lua
De papel japonês, minha pele de ouro laminado
Infinitamente delicada e infinitamente dispendiosa.
Não te assombra meu coração. E minha luz.
Eu sou, toda eu, uma enorme camélia
Esbraseada e a ir e vir, em rubros jorros.
Creio que vou subir,
Creio que posso ir bem alto —
As contas de metal ardente voam, e eu, amor, eu
Sou uma virgem pura
De acetileno
Acompanhada de rosas,
De beijos, de querubins,
Do que venham a ser essas coisas rosadas.
Não tu, nem ele
Não ele, nem ele
(Eu toda a dissolver-me, anágua de puta velha) —
Ao Paraíso.
(tradução de Afonso Félix de Souza)


ESPELHO

Sou prata e exato. Eu não prejulgo.
O que vejo engulo de imediato
Tal qual é, sem me embaçar de amor ou desgosto.
Não sou cruel, tão somente veraz —
O olho de um deusinho, de quatro cantos.
O tempo todo reflito sobre a parede em frente.
É rosa, com manchas. Fitei-a tanto
Que a sinto parte de meu coração. Mas vacila.
Faces e escuridão insistem em nos separar.
Agora sou um lago. Uma mulher se inclina para mim,
Buscando em domínios meus o que realmente é.
Mas logo se volta para aqueles farsantes, o lustre e a lua.
Vejo suas costas e as reflito fielmente.
Ela me paga em choro e agitação de mãos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã sua face reveza com a escuridão.
Em mim afogou uma menina, e em mim uma velha
Salta sobre ela dia após dia como um peixe horrendo.
(tradução de Vinicius Dantas)


PAPOULAS DE JULHO

Ó papoulinhas pequenas flamas do inferno,
Então não fazem mal?
Vocês vibram. É impossível tocá-las.
Eu ponho as mãos entre as flamas. Nada me queima.
E me fatiga ficar a olhá-las
Assim vibrantes, enrugadas e rubras, como a pele de uma boca.
Uma boca sangrando.
Pequenas franjas sangrentas!
Há vapores que não posso tocar.
Onde estão os narcóticos, as repugnantes cápsulas?
Se eu pudesse sangrar, ou dormir !
Se minha boca pudesse unir-se a tal ferida !
Ou que seus licores filtrem-se em mim, nessa cápsula de vidro,
Entorpecendo e apaziguando.
Mas sem cor. Sem cor alguma.
( tradução de Afonso Félix de Souza )


Trailer do Filme


Links (em inglês):

Link 1

Link 2


Artigo em Português sobre a autora.


Fonte: Rua da Poesia

Pensador

O Poema

4 de janeiro de 2010

E quem disse que é só pra ler???

Quando entramos numa biblioteca, numa livraria ou mesmo quando olhamos os livros nas nossas estantes normalmente pensamos nas histórias que há naquelas páginas, ou nos pensamentos de grandes mentes registrados em papel, ou mesmo em alguma besteira que virou livro, certo?

Bem, nem todos vêem apenas isso nos livros...


Um site listou várias obras esculturais e estruturais cuja principal (e na maioria das vezes única) matéria-prima são livros!

Vale a pena ver!







Visite o site para ver mais fotos. Eu achei este último inacreditável!

3 de janeiro de 2010

Coraline



"Coraline descobriu a porta pouco depois de terem se mudado para a casa."
(...)
"Das portas que encontrou, treze abriam e fechavam. A outra - a porta grande e de madeira escura esculpida, no canto mais afastado da sala de visitas - estava trancada."

Assim começa uma história aparentemente infantil, aparentemente banal, em um livro aparentemente dispensável. E, pra ser sincero, eu não cheguei primeiro ao livro. Para ser bem sincero, eu primeiro conheci o jogo baseado no filme, depois fiquei sabendo do filme e, só aí, em uma livraria que mais parece um sebo, me deparei com o mesmo título - nada tão especial, se não fosse pelo nome estampado acima de "Coraline": Neil Gaiman.

Coraline conta a história de uma menina que se muda com os pais - que não lhe dão a menor atenção - para uma casa muito velha, ou mais precisamente para um dos apartamentos da casa. Há duas mulheres morando no apartamento abaixo, e um homem um tanto quanto maluco no apartamento acima. E há um apartamento vazio. E há uma porta que dá para uma parede de tijolos. Pelo menos, ao que parece.

Coraline atravessa a porta e descobre outro mundo, onde sua Outra Mãe e seu Outro Pai a acolhem com carinho, brincadeiras e comidas deliciosas. E aquele Outro Mundo parece ser tudo que ela sempre quis. Parece mesmo, se não fossem pelos botões costurados nos olhos de todos, pela altura estranha e mãos que mais parecem garras de sua Outra Mãe... A partir daí Gaiman nos lança numa atmosfera de terror e fantasia non-sense (com deliciosas citações de Alice no País das Maravilhas e filmes clássicos de terror) que retiram definitivamente o livro do rótulo "Infantil".

O livro é de 2002, e conta com ilustrações brilhantes (e aterrorizantes) de Dave McKean. No Brasil, foi lançado pela Editora Rocco. Em 2009 foi feito um filme, dirigido por Henry Selick (o mesmo diretor de O Estranho Mundo de Jack, cujo roteiro é de Tim Burton), totalmente em stop motion, que é a técnica de se filmar as cenas quadro por quadro - uma das mais trabalhosas e mais antigas do cinema. Mas, o filme segue o livro???


Como toda adaptação, há diferenças. A principal e mais gritante é a presença de Wybie, um menino que mora ao lado da casa de Coraline, porém a maneira com que Selick - que também escreveu o roteiro do filme - introduziu o personagem na história é genial. Algumas diferenças ocorrem na história, quanto à sequência dos fatos e outros, mas mesmo assim o filme é uma bela adaptação do livro.

Quanto ao filme ainda, vale a pena assistir aos extras e visitar o site, pois em ambos há vídeos mostrando a dificuldade e o milagre que é a arte do stop motion. Para não ficar só na vontade, aqui vai um deles:


O filme é um dos melhores do gênero stop motion já criados. Arrisco até dizer que as marionetes, a caracterização dos personagens e a animação em si são melhores do que em O Estranho Mundo de Jack.

Foi lançado ainda um jogo para o Nintendo Wii (que por experiência própria não vale a pena...) baseado no filme, e há versões em Blu-Ray e 3D do filme disponíveis.

Enfim, Neil Gaiman reinventa em Coraline a fantasia non-sense, que normalmente não é levada muito a sério, adicionando uma boa (tremenda) dose de terror à história e a todos os personagens. O filme vale a pena, mas o livro... é perfeito.

"Este livro conta uma história fascinante e perturbadora que quase me matou de susto. A menos que você queira se esconder debaixo de sua cama, com o dedo na boca, tremendo de medo e fazendo toda a espécie de sons estranhos, sugiro que largue o livro devagarinho e vá procurar uma diversão mais leve, algo assim como um crime sem solução, pra desvendar."
Lemony Snicker, autor de Desventuras em Série.

E ele tem razão! Li o livro em uma casa que não era a minha, num quarto com objetos que eu desconhecia. Ao menor barulho eu olhava em volta. Então, se você quer misturar Alice com um terror direto e certeiro, e ainda ficar com dúvidas sobre a segurança das suas janelas, sugiro que leia!



E abaixo você confere o trailer do filme (em inglês):



"Contos de fada são a pura verdade: não porque nos contam que os dragões existem, mas porque nos contam que eles podem ser vencidos." - G. K. Chersterton

2 de janeiro de 2010

Distância



E então ele abriu os olhos
E apesar das sombras, ele viu
 As árvores belas de seu jardim
As mesmas, as de sua infância
Num outono dormente e frio

E ele apurou os ouvidos
E apesar da tempestade, ele ouviu
Os pássaros das suas manhãs
Mesmas melodias, as de sua infância
Numa aspereza e rouquidão, frio

E ele decidiu caminhar à noite
Só para brincar de ver estrelas
E as estrelas, as mesmas,
Debruçaram-se e mostraram seus rostos

E ele procurou instantaneamente
Só para brincar de matar saudade
A flor, a mesma, a única
E pairou, frio, no breu das estrelas

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Escrito em 29/12/2009, distante do meu Jardim.

Ouvindo A Distance There Is, Theatre of Tragedy.